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A miséria do pós-modernismo

O filósofo francês Jean-François Lyotard368 cunhou o termo »pós-modernismo« em seu ensaio de 1979 »Postmodern Knowledge« (»Conhecimento pós-moderno«). Esse termo se originou com filósofos franceses, que eloquentemente se distinguiram da »modernidade«. Os anos a que eles se referiam como »modernidade«, abrangem o período do papel progressivo da burguesia e o surgimento do proletariado industrial, a elaboração da dialética por Georg Wilhelm Friedrich Hegel e a era de ouro, em que Karl Marx e Friedrich Engels desenvolveram o materialismo histórico e dialético, que caracterizou toda uma época. Portanto, »pós-moderno« sempre significa também pós-marxista. Desde o início, Lyotard atacou o marxismo-leninismo e usou a habitual agitação anticomunista contra o »totalitarismo«.

O serviço secreto dos EUA, a CIA, já havia reconhecido o efeito corrosivo (destrutivo) do pós-modernismo sobre o movimento revolucionário dos trabalhadores em 1985. Ela criou um grupo de trabalho especial para lidar com a utilização política dessas teorias.369

368 Jean-François Lyotard (1924-1998) se considerava um socialista nas décadas de 1940 e 1950, embora com uma orientação anticomunista contra Stalin. Sob a influência do movimento de 1968 e da falência oportunista do revisionista e degenerado Partido Comunista Francês, Lyotard e seu grupo »Socialismo ou Barbárie« romperam com o movimento socialista.

369 Gabriel Rockhill, »The CIA Reads French Theory. On the Intellectual Labor of Dismantling the Cultural Left«, www.thephilosophicalsalon.com

A nova infusão da teoria há muito rejeitada da força produtiva da ciência

A introdução da microeletrônica e da automação na produção durante a década de 1970, levou a uma crise estrutural e ao aumento do desemprego permanente. Nessa situação, Lyotard, referindo-se a Marx, que acabara de ser declarado »obsoleto«370, faz a afirmação enganosa, de que na atual »sociedade do conhecimento« »o conhecimento (…) se tornou a principal força produtiva«.371

Sob a impressão da digitalização de todas as áreas da vida, a teoria há muito rejeitada da ciência como força produtiva, ganhou novo impulso com a palavra de ordem »sociedade da informação«. Lyotard cita uma passagem fora de contexto do trabalho preparatório de Marx para sua obra »O Capital«.

»O desenvolvimento do capital fixo372 indica o grau, em que o conhecimento social geral 373 se tornou uma força produtiva imediata e, portanto, as condições do próprio processo da vida social ficaram sob o controle do intelecto geral 374 e foram convertidas reorganizadas de acordo com ele.«375

O fato, de Lyotard construir a teoria da »força produtiva da ciência« a partir disso, é uma má interpretação intencional. Marx não fala da »ciência como uma força produtiva«, mas afirma que »o conhecimento social (…) se tornou uma força produtiva imediata«. Assim, Marx afirma:

»A natureza não constrói máquinas… Elas são produtos da indústria humana; material natural, transformado em órgãos da vontade do homem sobre a natureza ou de sua atividade na natureza. São órgãos do cérebro humano, criados pela mão humana; a forca do conhecimento concretizado.«376

370 obsoleto (antiquado)

371 Jean-François Lyotard, »Postmodern Knowledge«, p. 32

372 Capital fixo: recursos de trabalho como terra, edifícios, máquinas, matérias-primas

373 Conhecimento

374 Razão geral

375 Karl Marx, »compêndio básico (“Grundrisse”) da crítica na economia política«, Marx/Engels, Werke, vol. 42, p. 602

376 ibid.

Acima de tudo, isso inclui o know-how dos produtores, no qual o progresso do conhecimento científico deve ser incorporado antes de se tornar uma força produtiva material. O conhecimento e a ciência, sem dúvida, aumentam a produtividade do trabalho e formam a base do processo de trabalho. Mas os produtores são sempre os trabalhadores, artesãos e agricultores. A exploração do trabalho assalariado é a principal fonte de lucro para os capitalistas.

O fato de o anticomunista Lyotard ter de argumentar com Marx, mostra apenas o quão pouco o pós-modernismo realmente chegou a um acordo com o socialismo científico, esse produto intelectual central da »modernidade«.

Aparentemente, ele precisa disso para parecer um pouco confiável entre as pessoas progressistas.

Uma mentira central do pós-modernismo é a negação do papel revolucionário da classe trabalhadora internacional.377 Andreas Reckwitz, cérebro e conselheiro dos líderes partidários dos »Verdes«, afirma em seu livro »Society of Singularities« que a sociedade industrial está sendo substituída por uma »sociedade do particular«:

»O ponto central disso é a complicada busca pela singularidade e excepcionalidade.«378

A autorrealização individual pode, de fato, ser central para o estilo de vida e para o avanço na carreira de líderes do partido verde, como Annalena Baerbock e Robert Habeck, nas fileiras ministeriais de um governo imperialista. Entretanto, no mundo imperialista atual, a realidade de classe é, que mais da metade da humanidade pertence à classe trabalhadora. Essa classe não terá muito a ver com o ideal pós-modernista da »sociedade das singularidades«, uma vez que, como portadora coletiva do modo de produção mais avançado, ela quase não tem espaço para »singularidades«; ela só encontra sua força e produtividade na coletividade.

A brincadeira pós-modernista com »identidades«

No conceito de »identidades culturalmente construídas«, um florescimento do pós-modernismo, todo o voo idealista da fantasia se torna óbvio. A identidade como homem ou mulher, como pessoa negra ou branca é, portanto, adquirida apenas culturalmente. De acordo com a teoria »queer«, o progresso social e a liberação pessoal são alcançados por meio do questionamento das »identidades« convencionalmente definidas, redefinindo-as e vivendo novas »identidades«. O »regime do normal« é criticado de uma forma que soa tão abstrusa quanto radical.

»As práticas e os desejos não heteronormativos aparecem nesse regime como exceções ao geral…

Em contraste, a teoria queer os reconhece como formas sexuais e de gênero obstinados e independentes que (…) geram novos relacionamentos consigo mesmos assim como com os outros, novas formas de linguagem e práticas sexuais, outras representações e espaços.«379

Em vez de ser contra a ditadura do capital financeiro internacional que governa exclusivamente, a luta pela libertação deve, portanto, ser dirigida contra uma suposta ditadura da »heteronormatividade«380!

A crítica às »normas« da ideologia, tradição e moralidade burguesas, que organizam e estabilizam o estado burguês e a ordem familiar com seus modelos convencionais, é justificada. A existência de diferentes orientações sexuais perturba os apóstolos morais conservadores de valores. Essa discriminação social e essa perseguição continuaram por séculos até os dias de hoje.

Ela é intensificada por governos ultra-reacionários ou até mesmo sustentada por políticas anticomunistas. O presidente polonês Andrzej Duda, por exemplo, rotulou o movimento LGBT como uma »ideologia neobolchevique«.381

377 Consulte também as pp. 194-199 deste livro

378 Valerie Höhne, »Hurra, die Welt geht unter« (»Viva, o mundo está acabado«), www.spiegel.de, 6 de outubro de 2019

379 Mike Laufenberg, Centre for Interdisciplinary Women’s and Gender Studies,

Universidade Técnica de Berlim, »Teoria Queer: identidade e poder,

perspectivas críticas sobre sexualidade e gênero«

380 Ponto de vista, que assume a heterossexualidade como norma

381 »Um furacão ideológico sobre a Polônia«, www.heise.de, 17 de junho de 2020

Os marxistas-leninistas estão ao lado de todos os explorados e oprimidos, o que inclui a luta pela autodeterminação sexual, contra a exploração sexual, a violência e a pornografia. Já em 1898, August Bebel, o líder de longa data do partido do então ainda revolucionário SPD, pediu a abolição do Parágrafo 175, que na época processava os homossexuais e os condenava à prisão. Na Rússia, a proibição e a perseguição à homossexualidade foram suspensas imediatamente após a Revolução Socialista de Outubro de 1917.

Colocar a orientação sexual no centro da identidade – do pensar, sentir e agir – é mais uma vez uma maneira de pensar reacionária, pequeno-burguesa e individualista. Ela reprime a orientação de classe e promove o sexismo burguês e pequeno-burguês.

Seu núcleo idealista consiste na afirmação, de que os sentimentos e as definições são primários, enquanto a realidade objetiva da sociedade de classes e do estado burguês e da ordem familiar são secundários. Lênin já polemizava contra essas construções idealistas:

»O materialismo é o reconhecimento de ‘objetos em si mesmos’ ou fora da mente; as ideias e os sentimentos são cópias ou imagens desses objetos. A doutrina oposta (idealismo) diz: os objetos não existem ‘fora da mente’; eles são ‘compostos de percepções’.«382

A preocupação subjetivista-idealista com a própria identidade tem o objetivo de desviar a atenção do fato, de que as pessoas formam sua consciência na realidade da sociedade de classes, para canalizar a luta – em vez de contra a ditadura dos monopólios e por uma alternativa socialista – para canais »inofensivos«.

Lea Susemichel explica no livro »Políticas de Identidade: Conceitos e Críticas no Passado e no Presente da Esquerda«:

»Em uma política de esquerda, que se refere principalmente ao trabalhador industrial masculino como a figura modelo do proletariado, as mulheres lésbicas negras não se reconheciam«. A »política de identidade de esquerda« era, portanto, geralmente »uma reação à discriminação«.383

Que contraposição sem sentido! Para realmente superar a exploração e toda a diversidade da opressão capitalista, a »política de esquerda« deve, é claro, referir-se »principalmente« ao proletariado, ao qual as trabalhadoras lésbicas negras pertencem tanto, quanto os trabalhadores brancos heterossexuais. Somente o proletariado agindo em unidade pode desempenhar o papel principal nessa luta que muda a sociedade.

O verdadeiro oponente é rapidamente identificado com a busca criativa de identidade:

»Ao mesmo tempo, essa criatividade frequentemente produz defesa e pânico moral na sociedade de maioria heterossexual384

Não é o capital financeiro internacional que governa sozinho, não são os Estados imperialistas com sua superestrutura decadente e repressiva – não, o suposto pânico da maioria heterossexual está no centro da crítica. Não as lutas dos trabalhadores e do povo, não a luta de classes pelo socialismo autêntico, mas »perspectivas críticas de poder« sobre »sexualidade e gênero« são a ordem do dia.

382 »Materialismo e Empiriocriticismo«, Lênin, Obras, vol. 14, p. 16

383 Lea Susemichel/Jens Kastner, »Políticas de Identidade: conceitos e críticas no passado e no presente da esquerda«, p. 7

384 Mike Laufenberg, »Teoria Queer: perspectivas críticas sobre  poder e identidade na sexualidade e no gênero«, p. 336

Um sonho dos poderosos se tornaria realidade: a discussão na sociedade como um todo não seria sobre a luta de classes e o socialismo, mas seria dominada por um debate “criativo” sobre novas »identidades«, permitindo que a »identidade imperialista« se espalhasse sem impedimentos.

A elevação da linguagem sobre a realidade

O pós-modernismo também segue a visão idealista de que a realidade existe acima de tudo na linguagem e é caracterizada pela linguagem. Marx já havia polemizado contra isso.

»O cinismo está na natureza da coisa, e não nas palavras que a descrevem. (…) Se a sociedade quer ‘erradicar todos os inconvenientes’ dos quais ela tem que sofrer, bem, ela erradica as expressões ofensivas, ela muda a linguagem; e para esse fim ela só precisa recorrer à Academia para exigir uma nova edição de seu dicionário.«385

É claro que o uso da linguagem sempre reflete os desenvolvimentos sociais e também tem um impacto sobre eles; hoje, há, com razão, apelos por mais sensibilidade de gênero na linguagem. Entretanto, a teoria linguística pós-moderna leva a excessos de gênero. Ela declara que a »preocupação pessoal« é o critério decisivo. Por esse motivo, as pessoas brancas devem ficar caladas em relação ao racismo e os homens em relação às questões de liberação das mulheres ou à luta contra o sexismo. A mera presunção de falar sobre o assunto cimenta a discriminação.

A triste realidade dessas divisões pode ser vista em manifestações como a que ocorreu em Hanover no Dia Internacional da Mulher de 2021. Cada »identidade« se manifestou separadamente sob os ditados dos teóricos queer. Uma marcha para cada: mulheres negras, indígenas e pessoas de cor, »FLINTA*«386, ativistas do clima, esquerdistas e revolucionárias. Representantes das espécies tradicionalmente chamadas de »homens« não eram permitidos, a menos que se sentissem mulheres.

O efeito prejudicial dessa fragmentação também é notável internacionalmente. PJ James, um teórico do CPI (ML) Red Star (Partido Comunista da Índia [marxista-leninista] Red Star), observa:

»Na prática, a política de identidade pode levar a uma fragmentação cada vez maior e à eventual desintegração, mesmo em um grupo organizado em torno de uma única forma de opressão ou injustiça. Se alguém aceitar a teoria abstrata da política de identidade, então somente os Dalits387 podem lutar contra a opressão de casta e somente as minorias religiosas podem resistir ao fascismo Hindutva388 na Índia. Isso significa que os nascidos em castas superiores não podem ser aliados na luta contra as atrocidades de casta, que os homens serão inimigos das mulheres, que todos os hindus serão inimigos dos muçulmanos, de acordo com a lógica da política de identidade.«389

385 Karl Marx, »A miséria da filosofia«; Marx/Engels, Obras, vol. 4, p. 83 e p. 88

386 O termo »FLINTA*« reflete a categorização divisiva de mulheres, lésbicas, intersexuais, pessoas «não binárias”«, transgêneros e »agênero«, bem como todos os outros que »não são cis-hétero-machos«.

387 Dalits: grupo social mais baixo no sistema de castas da Índia

388 Movimento fundamentalista fascista, que se refere ao hinduísmo

389 PJ James, »‘Identidade’ vs. ‘Política de identidade’ no contexto indiano«, http://www.cpiml.in, 3 de novembro de 2021 (tradução nossa)

Crítica social do pós-modernismo

As contorções do pós-modernismo são corretamente rejeitadas pela classe trabalhadora. A partir de sua posição no processo de produção, por meio de sua experiência de vida e das visões marxistas-leninistas, os trabalhadores absorveram uma impressão materialista espontânea em sua consciência de classe.

Enquanto isso, as forças reacionárias e fascistas também estão utilizando a crítica do pós-modernismo para se integrar aos trabalhadores e suas famílias e para disseminar sua agitação racista e sexista. Eles desdenham e zombam da »mania de gênero«, mas, na realidade, pretendem arrastar o movimento militante das mulheres e a luta pela libertação das mulheres para a lama. De forma confusa, o pós-modernismo é considerado uma visão de esquerda, cujo objetivo é dissuadir a classe trabalhadora, em particular, de teorias e forças genuinamente progressistas e revolucionárias.

Outro grupo de filósofos e escritores, como Didier Eribon ou Christian Baron, que vêm de origens simples da classe trabalhadora, ou políticos como Sahra Wagenknecht, criticam a arrogância e a prepotência de um estilo de vida pós-moderno de esquerda, que despreza os trabalhadores. Entretanto, como uma corrente igualmente pós-modernista, eles defendem o conceito de »precariado« e »classismo«. Isso nega o caráter de classe da ordem social capitalista e o proletariado como sujeito revolucionário e o degrada unilateralmente a uma vítima das circunstâncias.

»Os critérios para saber, quem pertence ao ‘precariado’, não são a origem e a posição de classe, mas as condições de vida atuais: uma situação ‘precária’, ou seja, insegura, desprotegida, destituída.«390

Isso geralmente está associado a uma mentalidade de ´assistente social´ ou até mesmo à consequência nacionalista de cuidar apenas dos mais pobres entre os pobres de seu próprio país, que deveriam, é claro, seguir seus próprios conceitos reformistas ou revisionistas.

Uma crítica bem fundamentada ao pós-modernismo não pode ser resolvida em uma disputa amarga entre duas tendências pós-modernistas, mas deve se basear em uma análise de classe dialética-materialista e em uma estratégia e tática proletárias.

O pós-modernismo se apresenta como progressista, mas é apenas uma variedade de ideologia burguesa, que parece assumir a insatisfação das massas e suas críticas às condições sociais, mas quer distraí-las da luta de classes e da luta pela libertação das mulheres. Em sua hostilidade ao socialismo científico, é mais uma variante do sistema social do pensamento pequeno-burguês e do anticomunismo moderno.

390 Stefan Engel, »Aurora da Revolução Socialista Internacional«, p. 353

***

[tradução própria do capítulo II.16 do livro: »A Crise da Ideologia Burguesa e a Doutrina do Modo de Pensamento; Parte 2: A Crise da Ideologia Burguesa e o Oportunismo« / Autor: Stefan Engel, 2022; editora Neuer Weg (Essen – Alemanha) / www.neuerweg.de]

Olavo dos Santos

A miséria do pósmodernismo

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